sexta-feira, 29 de abril de 2011
Crônica Nerd #3: A Maior Viagem de Todos os Tempos - Parte 5/5
[Leia a Parte 4]
Túlio já estava se acostumando com a sensação de se sentir puxado para todos os lados, como se a gravidade existisse não só no centro, mas em cada canto do planeta, inclusive no ar. Ele sabia, é claro, que onde eles estavam não poderia ser dentro do planeta Terra. Ou talvez fosse, mas em outra dimensão. Quando pensou nisso, seu cérebro disse que ele estava louco, então ele parou.
Uma coisa que o preocupava, no entanto, era a bateria do Raio Temporal...
Quando, finalmente, eles sentiram o chão debaixo de seus corpos, um homem gritou com uma voz que era um misto de medo, raiva e total assombro:
"Mas o que é isso? Shinigamis?"
Apesar de estar claramente em uma língua diferente do português, os três amigos reconheceram a última palavra. Influenciados por Marcele, Túlio e Pablo sabiam muito bem que, na cultura japonesa, um shinigami é uma entidade mística encarregada de levar as almas das pessoas para o outro mundo, quando elas morrem. No instante seguinte, para espanto de Túlio e Pablo, no entanto, Marcele começou a falar na mesma língua que o homem.
"Sinto muito por aparecer tão de repente. Mas nós não somos shinigamis" disse ela.
"Se não são shinigamis, então quem ou o que são vocês? E como surgiram do nada?" perguntou uma segunda voz masculina.
Só então Túlio levantou o olhar. Pablo ainda estava sentado no chão, mas Marcele já se encontrava completamente de pé. Eles estavam em um lugar descampado e aparentemente desértico, com dois homens ao seu redor. O chão era completamente coberto por areia e, na paisagem, tudo o que Túlio conseguia ver eram cactos e pedras. Os dois homens, Túlio reparou, estavam vestindo roupas muito parecidas com as de alguns personagens de animes, mas que ele nunca tinha visto na vida real, uma espécie de quimono utilizado por samurais. Aliás, um deles, que possuía uma barba em ponta, estava usando, também, um chapéu de samurai. Em seguida, Túlio reparou que os dois homens estavam empunhando espadas que pareciam muito com as espadas que os samurais costumavam usar nos animes.
"Eles são samurais, não são?" perguntou ele, debilmente.
"Nos desculpem, mas isto é uma coisa que não podemos explicar" disse Marcele, ignorando a pergunta de Túlio e respondendo ao samurai, em japonês, ao mesmo tempo que se curvava em uma reverência.
"Hein? Não podem explicar?" perguntou o samurai do chapéu. "Que quer dizer com não podem explicar?"
"Viemos de um lugar onde a tecnologia é avançada demais. Não somos shinigamis e nem alienígenas, mas vocês não entenderiam se nós explicássemos. Por isso, não podemos explicar" disse Marcele.
"Está nos chamando de ignorantes, sua mulher insolente?" disse o outro samurai.
"Não! Me desculpe. Você entendeu mal" apressou-se a reponder Marcele, mas era tarde demais.
"Ei, Makoto" começou o samurai do chapéu. "Eu acho que nós deveríamos ensinar uma lição a estes vermes".
"Sim!" respondeu Makoto. "Eles se arrependerão de ter interrompido nosso duelo, Hanabusa".
"Tive uma ideia" disse Hanabusa, o samurai do chapéu. "Por sorte eu sempre trago uma katana extra comigo, para o caso de a primeira quebrar. Ei, mocinha! Por acaso seus amigos sabem manusear uma espada?"
Marcele olhou, espantada, para Hanabusa. Ao mesmo tempo, Makoto começou a rir debochadamente. Túlio, percebendo que algo estava saindo errado, perguntou:
"O que está, havendo, Maru-chan?"
"Estes dois homens são samurais e, pelo jeito, nós interrompemos o duelo deles" respondeu ela, apreensiva. "Agora, eles querem que um de nós duele com eles".
"Pois diga a eles que eu luto" disse Pablo, finalmente levantando-se. "Eu nunca deixaria um de vocês se arriscarem com isso e..."
"Não seja ridículo" interrompeu-o Marcele. "Eu lutarei" continuou ela, em japonês.
"De maneira nenhuma, belezinha. Nós somos samurais. Nunca permitiríamos que uma mulher como você sequer pensasse em duelar conosco" começou Hanabusa, enquanto Makoto caía na gargalhada. "Além disso" continuou ele "eu tenho planos melhores para uma belezinha como você" concluiu, com olhos gananciosos.
"Não me chame de belezinha" disse Marcele, pontuando a frase com um palavrão em japonês. "Dê-me a espada agora, se é que você pode ser chamado de homem".
"Está bem" disse Hanabusa, depois de uma pausa, parecendo espantado e, ao mesmo tempo, irritado. "Mas eu acho que é um desperdício matar uma belezinha como você" e, dizendo isso, lançou a espada, ainda na bainha, para Marcele.
Marcele capturou a espada ainda no ar e assumiu uma posição de batalha que fez com que os dois samurais arregalassem os olhos. Makoto aplaudiu, em meio a uma risada.
"Maru-chan, o que você está fazendo?" perguntou Túlio. "O que você vai fazer?"
"O que parece que eu vou fazer?" respondeu ela, de mau humor. "Vou lutar com eles, é claro".
"Marcele, por favor" disse Pablo. "Isso não é coisa para uma menina como você..."
"Silêncio" pediu ela, interrompendo o amigo pela segunda vez. "Você sabe muito bem que eu não sou mais uma menininha, Pablo. Além disso, sou a melhor aluna de kendō de São Paulo e você sabe disso".
Marcele desembainhou lentamente a katana recém adquirida. Hanabusa a olhava antentamente, com olhos maliciosos. Quando viu que ela estava realmente pronta e que não estava brincando, assumiu uma posição de batalha e começou a falar:
"Vou confessar que pensei que seu amigo fosse praticante de Kyūdō, por causa do arco que ele está segurando. Mas agora ficou claro para mim: vocês nem ao menos são japoneses, não é verdade?"
"E isso é importante?" perguntou Marcele. "Vamos acabar logo com isso".
"Ei, mocinha. Você já demonstrou toda a sua coragem. Agora, por que nós não deixamos isso para lá? Você me impressionou. Devolva minha espada e vá embora agora que não lhe faremos nenhum mal" continuou Hanabusa.
"De jeito nenhum. Você me ofendeu me chamando de belezinha. Eu não vou deixar barato" respondeu Marcele.
"Não vai deixar barato?" perguntou Hanabusa, parecendo confuso.
"Esqueça. É apenas uma gíria que nascerá daqui a muitos anos" disse ela. "Apenas vamos duelar, certo?"
"Bom, se é assim que você quer..." concluiu Hanabusa.
No momento seguinte, ele estava correndo em direção a ela, com a espada em mãos, enquanto pensava que não gostava de ver mulheres sofrendo danos físicos e que acabaria com aquilo tão rápido quanto fosse possível. Mais tarde, teria de liquidar os amigos da moça, mas com eles ele não teria compaixão. Então, finalmente, poderia retomar seu duelo com Makoto. Neste instante, ele saltou em direção a Marcele, brandindo a espada em sua direção, mas ela o bloqueou com sua própria espada, quase sucumbindo com o peso do samurai. Com um movimento rápido, no entanto, ela desferiu um corte para cima, quase na vertical, que fez Hanabusa recuar. Um movimento inesperado partindo de uma mulher. Neste instante ele percebeu que não eram apenas as roupas da garota que eram estranhas, mas ela era completamente diferente de qualquer mulher que ele já tivesse visto na vida. Agora era Marcele que estava correndo em sua direção, com a espada na lateral do corpo. Quando ela chegou perto, desferiu mais um golpe para cima, mas Hanabusa já estava preparado e saltou por cima de Marcele, errando as costas da garota por centímetros e concedendo uma chance para que ela, girando, desferisse outro golpe. Desta vez, ela acertou o golpe, mas foi no chapéu de Hanabusa. Recuando para avaliar os danos, ele jogou fora o chapéu e, percebendo que não tinha sido realmente atingido, correu mais uma vez na direção de Marcele, com a espada na lateral, imitando os movimentos da garota. No entanto, ela estava preparada para seu próprio golpe para cima e, abaixando-se, conseguiu escapar do golpe, ao mesmo tempo que encostava a ponta da espada no queixo de Hanabusa, deixando-o completamente indefeso. O homem, paralisado, jogou a própria espada no chão, esperando que Marcele o matasse. Ela, porém, recuou.
"Nunca mais" disse ela "subestime uma garota".
Ela começou a se movimentar na direção de seus amigos, que estavam completamente estupefatos. Makoto, ela reparou, também estava com os olhos completamente arregalados, o que a animou muito, e ela teve que segurar o riso.
"Aonde você está indo?" perguntou Hanabusa. "Volte aqui agora mesmo e termine o serviço" disse ele.
"Não" respondeu ela. "Meu serviço já está terminado. Eu venci. Agora meus amigos e eu vamos embora".
"Será que você não entende?" disse Hanabusa. "Mesmo que não me mate, você me derrotou. Ainda que meu corpo físico esteja intacto, minha honra foi destruída. Eu não posso continuar vivendo".
Marcele olhou para ele com pena. Tinha se esquecido do código de honra dos samurais. As regras eram bem claras: se um samurai derrotado não morresse em batalha, ele próprio deveria se matar, com uma adaga.
"Olha, Hanabusa" disse ela. "Esqueça isso. Você nem ao menos sabe quem eu sou, daonde eu venho e para onde vou. Eu não sou uma guerreira samurai e nem nunca serei, porque, do lugar de onde eu venho, já não existem mais samurais de verdade. Eu tive vantagem porque estudei muito sobre os samurais e sobre todas as técnicas existentes no passado, além de aprender as técnicas modernas do Kendō. O melhor que você e Makoto tem a fazer é me esquecer e continuar com seu duelo" disse ela.
"Ei, Hanabusa" disse Makoto. "A mocinha tem razão. Por que nós não esquecemos isso tudo? Eu prometo que não contarei a ninguém no povoado. De qualquer jeito, ninguém iria acreditar se eu contasse que apareceram três garotos do nada".
Marcele olhou de Hanabusa para Makoto. Um samurai demonstrando compaixão pelo outro a ponto de mentir e esquecer uma derrota era uma coisa que ela não tinha aprendido nos livros.
"Está bem, velho amigo" disse Hanabusa. "Acho que vamos ter que voltar e dizer que empatamos novamente. O que me diz de tomarmos um pouco de saquê?"
"Boa ideia. Desta vez, vamos na minha casa" convidou Makoto, começando a se distanciar. Virou no meio de sua caminhada, no entanto, e virou-se para os três garotos. "Vocês também estão convidados para um pouco de saquê" disse ele. "Se já tiverem idade para isso, é claro" concluiu.
"Nós agradecemos" disse Marcele, fazendo uma rápida reverência. "Mas acho que já é hora de voltarmos para casa".
"É uma pena" concluiu Hanabusa. "Bem, apareçam um dia desses para me conceder uma revanche. Foi uma honra conhece-los" disse, fazendo uma reverência, e sendo acompanhado por Makoto.
"A honra foi toda nossa" disse Marcele, fazendo, também, uma reverência, e completando em bom português: "Se abaixem!" ao que os dois amigos também fizeram, cada um, uma reverência muito da desajeitada.
Ao que os dois samurais foram se afastando, Marcele, ainda com a katana nas mãos, sentou-se de cócoras no chão.
"Puxa, essa cansou" ela disse. "Estou tão feliz! Nunca pensei que, um dia, eu encontraria um samurai de verdade!" e, depois de uma respiração profunda, completou: "Então? Vamos embora?"
Pablo olhou de Marcele para Túlio e de volta para a garota. Túlio, imitando-o, olhou da garota para o amigo e de volta para ela. Nenhum dos dois parecia muito animado com a informação que tinham.
"O que foi?" perguntou Marcele, subitamente apavorada, se levantando. "Aconteceu alguma coisa com o Raio Temporal?"
"Bom, na verdade ainda não" disse Túlio. "Mas o problema é que, de acordo com meus cálculos, o Raio Temporal só deve ter bateria para mais um acionamento. Se não pararmos em uma época que tenha eletricidade, ficaremos presos para sempre nela".
Marcele arregalou os olhos. Aproveitando que estava no Japão, imaginou uma enorme gota d'água brotando no alto de sua cabeça, como em todos os seus animes favoritos. No entanto, logo espanou este pensamento para fora de sua mente e disse:
"Bom, a menos que vocês queiram ficar aqui, o que eu, sinceramente, não acho que seria uma má ideia, acho que teremos de arriscar, não é?"
Pablo olhou para Túlio, e o amigo olhou para ele. Marcele estava certa, eles sabiam. Afinal, o que teriam a perder?
"Certo!" disse Túlio, animando-se de repente. "Então vamos tentar, não é mesmo?"
E, indo em direção ao Raio Temporal, acionou a alavanca uma última vez.
[Leia "A Maior Batalha de Todos os Tempos", a sequência desta crônica]
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